Vampiros de Porcelana (de Shirlei Massapust)

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Vampiros de Porcelana (de Shirlei Massapust)

Vocês já reparam que hoje em dia quase todo mundo que se interessa por vampiros também gosta de bonecas? O renascimento do mercado artesanal de brinquedos para adultos deve uma pequena parte de seu sucesso ao clássico Entrevista com o Vampiro (1976), de Anne Rice, onde as bonecas de porcelana exercem um papel importante na formação da personalidade da personagem Cláudia. Logo depois que ela foi transformada e adotada por Louis e Lestat, aos cinco anos de idade, a menina começou a ganhar presentes. “Muda e bela, Cláudia brincava com bonecas, vestindo-as e despindo-as durante horas”.[1] Os vampiros faziam o mesmo com a pequena dama:

Uma fila interminável de costureiras, sapateiros e alfaiates invadiu nosso apartamento, produzindo para Cláudia o que havia de melhor na moda infantil, de modo que ela era sempre uma visão, não somente por sua beleza de criança, com seus cílios compridos e seus gloriosos cabelos louros, mas pelo bom gosto de chapéus finamente trançados e pequenas luvas de renda, casacos e capas de veludo brilhante e delicadas camisolas de mangas fofas e fitas azuis. Lestat brincava com ela como se fosse uma boneca magnífica.[2]


Sessenta anos depois os vampiros continuavam a vestir e pentear a filha como se ela fosse “uma boneca mágica” com rostinho redondo e boca em botão.[3] Cláudia odiava isto e protestava constantemente pelo direito de ser tratada como uma mulher adulta. O problema é que naquela época e localidade geográfica ela nunca seria tratada de outra forma mesmo que fosse humana, adulta, casada, idosa e mãe de oito filhos. Acontece que antes da revolução feminista todas as damas européias eram juridicamente incapazes de exercer os atos da vida civil sem autorização do pai, marido, irmão ou filho que atuasse como seu representante legal. Sempre que o homem não obrigava ou permitia que sua esposa, filha ou irmã solteira trabalhasse, a mulher permanecia reclusa sem nada para fazer além de cuidar da casa ou vigiar os escravos domésticos. Inúmeras damas e governantas ociosas descobriram que a melhor forma de afastar o tédio era criar maquetes de sua propriedade ou montar outros tipos de casas de bonecas, sendo o hobby considerado uma recreação chique para adultos. Os melhores itens eram importados da China, pois, antes de 1707, nenhum europeu obteve sucesso na tentativa de fabricar a porcelana, inventada pelos chineses durante a dinastia Tang (618-907 d.C.).A associação entre os artigos de coleção e suas donas ficou mais forte durante o séc. XVII, quando os artesões holandeses começaram a confeccionar perucas de cabelo humano para bonecas dotadas de olhos de vidro, cujas mechas poderiam ser fornecidas pelas clientes. Em caso de óbito era comum enterrar a boneca junto com a falecida. Surgiram boatos sobre pessoas que sentiam dores quando os brinquedos portadores de seus cabelos ou dentes de leite eram espetados com agulhas…

A Condessa Erzébet Bátthoy adorava punir as empregadas faltosas com espetos. Por acaso ela também gostava de bonecas, mas não acreditava em vodu. Então ela contratou um relojoeiro alemão para lhe fazer um robô em tamanho natural (os dados provieram da tradição oral da região, compilada pela historiadora Valentine Penrose):

Esse ídolo foi instalado na sala subterrânea do castelo de Csejthe. Quando não estava em uso, descansava numa caixa de carvalho esculpido, cuidadosamente fechada a chave em seu caixão. Junto da caixa estava fixado um pesado pedestal, sobre o qual podia-se colocar com segurança a estranha dama de ferro oco, pintada com uma tinta cor de carne. Ela estava inteiramente nua, maquiada como uma bela mulher, ornada com motivos ao mesmo tempo realistas e ambíguos. Um mecanismo fazia com que a boca se abrisse num sorriso idiota e cruel deixando ver dentes humanos, e fazia também com que os olhos se movessem. Nas costas ostentava uma cabeleira de moça, que ia quase até o chão, e que Erzébet certamente escolhera com infinito cuidado. Deixando de lado as cabeleiras castanhas com que poderia ornar a sua deusa, Erzébet encontrara para ela cabelos de uma tonalidade louro prateada. Essa longa cabeleira acinzentada teria pertencido à bela eslovena vinda de tão longe para servir em Csejthe, e que foi sacrificada logo que chegou? Um colar de pedras preciosas incrustadas descia por sobre o peito. Era precisamente tocando uma dessas pedras que tudo começava a funcionar. Do interior vinha o grande e sinistro barulho do mecanismo. Então os braços começavam a se erguer, e logo se fechavam bruscamente num abraço no que estivesse ao seu alcance, sem que nada pudesse soltá-los. Depois painéis retangulares deslizavam para a esquerda e para a direita e, no lugar dos seios pintados, o peito se abria, deixando sair lentamente cinco punhais pontiagudos que transpassavam habilmente a enlaçada, com a cabeça jogada para trás, os longos cabelos dispersos como os da criatura de ferro. Pressionando uma outra pedra do colar, os braços tornavam a cair, o sorriso se apagava, os olhos se fechavam de repente, como se o sono se tivesse abatido sobre ela. Supõe-se que o sangue das moças transpassadas corria então por uma canaleta que o levava até um recipiente abaixo, conservado aquecido. (…) Mas Erzébet se cansou rapidamente. (…) As engrenagens complicadas enguiçaram, enferrujaram e ninguém soube consertá-las.[4]

É uma pena que a boneca torturadora da condessa Erzébet Bátthoy nunca tenha sido localizada para exposição em museus. Porém ainda existem outros autômatos de função social menos desagradável. Por exemplo, a boneca que castiga um boneco engraxate batendo com um martelo em sua cabeça enquanto ele lustra suas botas (em exposição no Museo de Juguetes Mecánicos de las Atraccions, em Barcelona). Os primeiros robôs foram fabricados por volta do século XVII, por relojoeiros alemães e suíços, logo apos a invenção do mecanismo da corda de relógio. Alguns eram tão caros e bem elaborados que o público pagava entrada para vê-los desenhar ou escrever com uma caneta tinteiro. Outros eram capazes de tocar flauta, soltar bolhas de sabão, mexer a cabeça e os olhos, etc. Quando Thomas Edison produziu uma boneca capaz de recitar o poema Mamãe Gansa, no séc. XIX, alguns afirmaram que o inventor era ventríloquo e continuaram insistindo na hipótese mesmo depois que ele exibiu o seu fonógrafo fora daquele esconderijo e gravou as vozes de terceiros.

Profanação da arte, repressão e pecado:

O quarto mandamento bíblico proíbe a fabricação de imagens de seres viventes para fins de culto. (Êxodo 20:4) O Alcorão afirma que todos os objetos inanimados são incapazes de fazer o bem ou o mal a alguém. Portanto o indivíduo que idolatra obras de arte desperdiça seu tempo (Al-A’raf 7:148 e Al-Anbiyâ 21:51-54). O persa Bukh?r? registrou a crença popular de que o anjo da misericórdia não visita casas onde existam imagens de seres viventes ou cães de guarda (Hadith 4:47 e 4:448). Os exegetas vão além do óbvio e proíbem a posse de imagens para fins ornamentais, sob o argumento de que estas coisas não são apenas inúteis: Elas dão azar! É por isto que tanto os muçulmanos quanto os judeus evitam fotografias, quadros, estátuas, bonecas, etc.Com o advento do cristianismo o clero católico endossou essa crença, fazendo reserva para santos e presépios. Parece que o quarto mandamento serviria para condenar tudo, menos a arte sacra, porque é benta. Os inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger supuseram que deus é tão ciumento dos seus direitos autorais que, ao invés de punir apenas o plagiador, causa a ruína de toda a vila onde vive um fabricante de bonecas. No Maleus Maleficarum (1484) eles informam que o diabo orienta as bruxas a simular a obra do Criador “provocando-lhe a Sua ira e fazendo com que Ele, a título de punição pelo seu crime, venha a lançar flagelos sobre a terra”. Então a bruxa desata a rir da desgraça coletiva, sem se importar com a pequena parcela que lhe cabe, e faz de tudo para deixar a divindade cada vez mais nervosa: “Para ainda mais aumentar a sua culpa, as bruxas experimentam especial deleite em construir tais imagens nas estações mais solenes do ano”.[5]É claro que o posicionamento do inquisidor seria cômico se não fosse trágico. Nenhum artesão fabrica brinquedos na véspera do natal na intenção de fazer mofa do cristianismo. Acontece que sempre existiu uma grande demanda por bonecas no mês de dezembro, quando os romanos trocavam presentes durante festas particulares, e este costume foi agregado pelos cristãos por meio do sincretismo. Na Roma antiga o deus Lares era homenageado em maio com altares lotados de bonecas. As noivas gregas consagravam suas bonecas às deusas Ártemis e Afrodite antes de casar. Ou seja, a ordem era a de substituir, não eliminar. Enquanto as bonecas pagãs deixavam de fazer parte da vida quotidiana, os santos e presépios entravam pela porta dos fundos!

Por que algumas pessoas ainda temem os brinquedos?

No mundo antigo era comum não apenas mumificar os corpos de certas pessoas, mas também fornecer corpos substitutos para casos de emergência. Os egípcios construíam estatuas, maquetes de oficinas e casas mobiliadas para bonecas entre o segundo e terceiro milênio a.C. Também na Babilônia foram encontrados restos de uma boneca articulada datada desta época. Vinte e cinco modelos provenientes da tumba de Meketre incluem uma cena de pesca com rede usando o esforço conjunto da tripulação de dois barcos, um ateliê de tecelagem, um ateliê de carpintaria, gente do povo e pastores procedendo à contagem do rebanho. Na tumba do príncipe Mesehti foram encontradas duas miniaturas de tropas. Uma era composta de quarenta soldados egípcios de pele morena, portando lanças e escudos, e a outra de quarenta arqueiros núbios negros. Mas nada se compara à coleção de Qin Shihuang (259-210 a.C.), o primeiro imperador da China, que foi enterrado junto com mais de oito mil estátuas de guerreiros e cavalos em tamanho natural.Além de ser um hobby saudável era crença geral de que a confecção ou aquisição de maquetes durante a vida auxiliaria seu possuidor após a morte. No Japão as estátuas e estatuetas de terracota, enterradas junto aos mortos desde a pré-história, são chamadas de Haniwa (??). No Egito o termo shabti deriva de uma raiz arcaica indicando que a estatueta ou boneco é “aquele que responde” no momento em que o falecido é chamado para executar um trabalho árduo nos campos dos mundos dos mortos. A tumba de Tutancâmon (133-1323 a.C.) continha 413 figuras shabit dentre as quais 365 são de operários, 36 de capatazes, 12 de inspetores e algumas do próprio rei.[6]No folclore japonês todas as bonecas podem adquirir espírito por meio do contato com os humanos. O ningyoushi (kanji ???, kana ??????) ou artesão é capaz de fabricar a boneca ningyoo (kanji ??, kana?????) capaz de absorver a moléstia e curar uma criança adoentada caso seja posta no leito onde ela dorme. No período Heian (794-1185) elas eram usados para afastar demônios. Inicialmente as bonecas eram muito simples, moldadas em palha ou papel, servindo para afastar epidemias quando colocadas nas fronteiras das aldeias. Para purificar corpo e alma se usavam bonecas de papel que, depois, eram jogadas no rio para levar embora os maus fluídos.[7] Até hoje as mulheres com diagnóstico de esterilidade que obtiveram a graça de ter um filho levam uma boneca para ser cremada no templo Kiyomizu-Kannondo, em Tóquio. Este ritual se chama Ninguyo Kuyo, “consolo da alma das bonecas”.A teoria é simples: Depois que a boneca absorve o malefício, a energia negativa absorvida se torna parte dela e o objeto precisa ser destruído para não causar o efeito reverso contaminando o ambiente. O problema é que as mudanças nos materiais de confecção implicaram em adaptações culturais. Ou seja, ninguém reluta em destruir uma boneca de papel, mas se a coisa for feita da mais fina porcelana chinesa, com vestes de seda, e valer mais de dois mil reais é melhor manter o objeto agourento muito bem guardado e protegido. Não importa se o folclore alerta sobre a possibilidade do espírito do vampiro sair do baú à noite para penetrar nos seus sonhos e mordiscar seu pescoço.

Fluxo e refluxo energético

Todos conhecem os famosos contos folclóricos sobre casas assombradas capazes de enlouquecer seus habitantes porque, no passado, elas foram lares de psicopatas, de vitimas de violência doméstica, etc. Inúmeras obras de terapias alternativas afirmam que o ser humano exala grandes quantidades de energia durante momentos de angústia, stress, paixão, etc. A energia exalada por um estressado, por exemplo, ficaria impregnada na casa como a poeira que se acumula atrás dos móveis. Isso faria com que os objetos inanimados se transformassem em verdadeiros depósitos de stress. Visitas que sentassem num sofá estressado perderiam a alegria e ficariam estressadas em decorrência da contaminação. Nem o proprietário da coisa conseguiria melhorar e mudar de ânimo, pois ele continuaria a absorver e exalar o seu próprio baixo astral.Reza a lenda que para dissolver o acúmulo de energia no ambiente é necessário desobstruir o fluxo energético por meio do feng shui (?? ou ??). A saturação e limpeza de rochas por exposição às fontes naturais também é muito utilizada na terapia com cristais. Teoricamente a pedra limpa passa bons fluídos ao portador, por osmose, ao mesmo tempo em que absorve as energias ruins. Uma nova limpeza é feita após o uso para que as rochas saturadas não preservem e espalhem o problema do paciente! Por outro lado, produtos industrializados como papel, plástico, celulóide e a resina de poliuretano só deixam de ser um problema em caso de destruição pelo fogo.O filme The Doll Master (Coréia do Sul, 2004), dirigido por Yong-ki Jeong, retrata fielmente a antiga crença oriental de que certos objetos inanimados podem prejudicar seus donos quando manuseados de forma irregular. Ou seja, que “se você se apegar a um objeto e andar sempre com ele a coisa pode formar uma alma”, e que objetos inanimados “como uma rocha, uma boneca ou uma casa” pela qual alguém se apega em demasia ou devota obsessão, acabam absorvendo parte da alma humana e se tornam vivos.Esta obra de ficção apresenta vários resultados para o que acontece quando objetos feitos de resina de poliuretano desenvolvem alma por culpa de seus donos: Damian, um boneco articulado, foi adotado e transportado pela mesma pessoa durante dezenove anos, sete meses e vinte e oito dias. Esta mulher tímida costumava escutar vozes e conversar com o ‘irmãozinho’. Virou uma excluída social… Ainda no filme The Doll Master uma designer de bonecas encontrou um manequim sentado sobre um túmulo. O espírito vingativo do manequim passou para o corpo da mulher e começou a perseguir todos os descendentes do assassino do seu amado criador. A artesã possessa disse:

Eu acredito que meu trabalho da vida aos objetos inanimados. (…) Você nunca possuiu coisas às quais era apegado? Você já ficou triste após perder aquelas coisas? Eu penso que quando os objetos perdem seus donos, eles ficam tristes também. Você sabia que quando algo está perdido, há algumas ocasiões em que parece que ele nunca desapareceu do seu local de origem? Eles retornam para os seus antigos donos.

Mina, outra boneca articulada, ganhou alma quando sua dona sofreu um acidente. Com o tempo a menina enjoou da boneca e jogou fora, mas a boneca não enjoou da menina. Mina passou a perseguir sua dona, inconformada com o fato de haver sido descartada e esquecida. A boneca era capaz de projetar seu espírito em forma humana diante da antiga proprietária, fazendo-a acreditar que dialogava com uma menina de verdade enquanto os outros a viam falar sozinha. Por isso aquela mulher deixou de ser uma modelo desinibida e bem sucedida para acabar igualmente taxada como louca.O caso da luxuosa boneca Mina é idêntico ao de Mary, uma bonequinha de porcelana que aparece no episódio 11 do anime Histórias de Fantasmas (?????; Japão, 2000). Mary conseguiu reencontrar o caminho de casa e voltou, querendo brincar, mas só achou a filha órfã da sua falecida dona, que era bastante madura e não gostava de bonecas. O brinquedo problemático assombrou a adolescente até ser entregue a um templo budista onde um monge explicou que o certo teria sido cremar os pertences da falecida junto ao corpo na data do óbito. Enfim, nestas obras de ficção as almas dos brinquedos maltratados desejam maltratar pessoas, as dos que são amados querem mais amor e assim continuam sugando energia alheia, feito vampiros de porcelana.No clipe da música Viva Forever da banda Spice Girls um conjunto de bonecas leva uma menininha para o além e deixa seu namoradinho solitário bastante triste. A moral da estória parece ser que a opção de brincar para sempre traz a felicidade para a menina, mas frustra as intenções do garoto.No episódio 11 (Usagi vs. Rei? A Nightmare in Dreamland) de Sailor Moon, Jadeite comanda a y?ma Muurido que faz as meninas sonharem acordadas felizes, sem saber que passam vergonha agindo de forma estranha, e tem a energia drenada pela boneca.

Superstições no ocidente

Um dos mais famosos filmes de terror do ocidente é o Brinquedo Assassino (Child’s Play; EUA, 1988), onde o fantasma de Charles Lee Ray possui o corpo de um boneco mecânico após sua condenação à pena capital… Até hoje há quem sustente, de forma bem fundamentada, que a variante nasceu no Brasil. No início dos anos 80 o programa infantil matinal mais assistido era o Balão Mágico, na Rede Globo, que possuía vários apresentadores, entre eles o ator Orival Pessini, interpretando o boneco alienígena Fofão. Cansado de atuar como coadjuvante, Orival Pessini aceitou a proposta da Band para apresentar um programa exclusivo. Ele estava prestes a descobrir o que acontece com quem ousa representar monstros carismáticos perante o publico infanto-juvenil:

Seu sucesso se refletia nas vendas de produtos com sua marca. (…) Um dos produtos mais vendidos foi o Boneco do Fofão. Foram mais de 4 milhões vendidos. A empresa que o fabricava era a “Mimo”, pouco expressiva num ramo em que a “Estrela” que dominava. (…) Aconteceu que, um belo dia, um desses bonecos quebrou. Uma mãe desesperada notou a coisa mais macabra do mundo: Havia um punhal dentro! Ao sacudir o boneco ela percebeu que (…) existia uma bela quantidade de velas pretas e outras coisas. (…) O que realmente existia era uma espécie de haste plástica que conectava a cabeça ao corpo para dar mais estabilidade. (…) Por ter sua ponta afilada, muita gente relacionou a um punhal. E as velas? Bom… O enchimento do boneco era variado. (…) Tinha restos de tecido, alguns pedacinhos de madeira e algo parecido com algodão, plástico, lixo, etc. (…) Parecia que eles pegavam o que tivesse a mão para encher o bicho. (…) Diziam que o ator (…) tinha feito um pacto com o diabo para decolar na carreira artística e que por conta disso, tinha dado um jeito que os bonecos de seu personagem tivessem dentro de si a tal arma-branca. (…) Segundo a lenda o punhal Keris tem propriedades místicas: Ele pode não só armazenar espíritos como também serve de link sobrenatural, como se fosse um portal que leva os espíritos de um Keris a outro. (…) Tem gente que jura até hoje que viu o boneco se mexer sozinho. (…) O fato é que essa lenda decretou o fim das vendas. (…) Quase todos os bonecos foram destruídos; muitos deles queimados! Isso a contra gosto das crianças, que não queriam se separar do brinquedo. (…) Logo após do massacre dos Fofões (…) um filme surgiu. Seu nome: Brinquedo Assassino (Child’s Play; EUA, 1988). Nele um psicopata Charles Lee Ray é baleado pela polícia e, antes de morrer, entoa um cântico vodu, passando sua alma para um boneco. Esse boneco era baseado no personagem de um desenho fictício para crianças chamado de “bonzinho”. Um boneco baseado num programa de TV e amaldiçoado. Dizem por aí que a história do filme foi influenciada pela lenda brasileira do Fofão.[8]

De fato o corte do cabelo do brinquedo assassino, assim como o design das roupas (blusa listrada e macacão de jeans), eram exatamente iguais às do Fofão que, francamente, parecia mais feio que o Chucky! Mas os militantes da dita batalha espiritual sempre foram muito desconfiados das coisas encontradas dentro dos bonecos, especialmente as junções de pescoços. Na apostila A Bela Face do Mal a missionária Elizabete Marinho acusa todas as empresas fabricantes de bonecos com aparência adulta de “provocar irresponsabilidade e ambições adultas na criança, que começa a manifestar a sua natureza sexual bem antes do que a natureza exige”.[9] Uma adolescente residente no interior de Belém do Pará lhe confessou sentir “um forte desejo de se prostituir” ao brincar de boneca.[10] Em Goiânia (GO) uma mãe percebeu que a sensualidade da filha de sete anos aflorava durante a brincadeira. Quando a criança revelou que gostaria de ter seios e corpo iguais aos da Barbie, a mãe preocupada resolveu destruir o objeto de horror. Ela arrancou a cabeça da boneca e ficou estupefata ao encontrar uma peça de junção entre a cabeça e o corpo que lhe parece ser “um símbolo de homossexualismo”.[11] Eu já tive o desprazer de encontrar objetos idênticos ao desenhado pela mãe preocupada dentro das cabeças das minhas bonecas, durante a infância, porque o pescoço dos modelos antigos quebrava facilmente. O pino parecido com o símbolo ? (masculino), de cor branca ou bege, servia apenas – e obviamente – para afixar o corpo de plástico duro na cabeça de borracha. Mas a missionária Elizabete comentou sobre este pino que “ele nada mais é do que a atenção de Lúcifer em desvalorizar a representação dos sexos”.[12]A missionária também registrou o relato de uma mãe que havia comprado uma boneca Eliana, da Estrela, para presentear sua filha, mas a menininha achou que o robô de um metro de altura só era capaz de andar quando alguém segurava sua mão porque estava possuído pelo demônio. Adriana tentou lhe explicar o funcionamento da engenhoca, mas não adiantou. A mãe resolveu brincar de orar e “expulsar o demônio”, mas a filha continuava com medo. Ela começou a fantasiar, dizendo que via a boneca fazer caretas e piscar o olho pintado. Adriana só aceitou destruir o caríssimo brinquedo quando surpreendeu seu filho caçula nu, de pênis ereto, tentando fazer sexo com a mulher de plástico. O menino tinha apenas quatro anos de idade.[13]

Uso artístico do folclore correlato

Pelo menos dois vampiros da ficção acabaram frustrados após cravar seus dentes em figuras atrativas desprovidas de sangue… No quarto episódio de Don Drácula (Japão, 1980), produzido por Osamu Tezuka, o Dr. Van Helsing encheu bonecas eróticas com essência de alho para sufocar o Conde Drácula quando ele viesse mordê-las, confundindo-as com jovens humanas. De início o plano funcionou, porém as bonecas infláveis fugiram após criar vida própria, possuídas por monstros marítimos… Oito anos mais tarde a respeitável Miyu sofreu seu momento de vergonha ao mordiscar um aparentemente saboroso menino de resina de poliuretano. No enredo do segundo episódio da primeira versão do seriado Vampire Princess Miyu (?????; Japão, 1988), de Narumi Kakinouchi e Toshiki Hirano, algumas pessoas foram transformadas em bonecos articulados por uma criatura de mesma espécie que lhes prometia beleza eterna. A energia vital emitida pelos novos bonecos garantia o seu sustento. No meio de tudo um personagem coadjuvante se recusou a comprar um brinquedo para sua filha, pois estava devidamente prevenido pelos ditos folclóricos: “Você não acha que as bonecas japonesas são assombradas? O folclore diz que o cabelo das bonecas cresce, e outras coisas deste tipo”.No outro lado do mundo a indústria norte-americana produzia mais figuras infantis em plástico e borracha do que bonecos ornamentais articulados de aspecto adulto. É por isso que o fantasma de Charles Lee Ray precisou se contentar com o corpo do boneco Chucky no filme Brinquedo Assassino (Child’s Play; EUA, 1988). De volta ao oriente, encontramos uma óbvia alusão aos males causados pelo uso de ácido lisérgico, comumente pingado em doces, e cocaína, dentro do seriado Sailor Moon (????????????; Japão, 1992). No episódio “Um Pesadelo na Terra dos Sonhos” (???????), um fantasma feminino chamado M?rido (????) possui uma boneca mecânica e adquiri a confiança das crianças a quem serve doces alucinógenos capazes de causar exaurimento físico e psíquico, para lhes escravizar. Alternativamente ela também assopra um pó cuja inalação surte o mesmo efeito. A energia humana liberada durante o processo alimenta as entidades de seu mundo etéreo.A lenda da vivificação de bonecas articuladas, que levam embora as almas de seus portadores, foi surpreendentemente bem representada no clipe Viva Forever (Inglaterra, 1998), da banda britânica Spice Girls, cuja exibição foi proibida nos Estados Unidos. A escolha deste tema macabro por aquela banda pop só não causou mais estranheza do que o patrocínio dado pela companhia de brinquedos Custom House à produção do filme de terror The Doll Master (Coréia do Sul, 2004), dirigido por Yong-ki Jeong, onde a lenda é apresentada ao mundo em detalhes da mais pura tradição oriental.Outra referência digna de nota é a estória narrada no décimo primeiro episódio do seriado Histórias de Fantasmas (?????; Japão, 2000) onde uma boneca volta para casa insatisfeita com o fato de haver sido descartada. Ela passa a importunar a filha órfã de sua antiga dona, querendo brincar, embora a moça só esteja interessada em se exibir em trajes mínimos para o namoradinho… E também, antes de tudo, um boneco articulado falante teve o atrevimento de espantar Roma no romance italiano As Aventuras de Pinóquio (1881), de Carlo Collodi.

Porém o único defeito moral deste brinquedo com pretensões humanas era o fato de ser vergonhosamente mentiroso.

Notas:
[1] RICE, Anne. Entrevista com o Vampiro. Trd. Clarice Lispector. Rio de Janeiro, Rocco, 1992, p 97.

[2] RICE, Anne. Op cit, p 98.

[3] RICE, Anne. Op cit, p 101.

[4] PENROSE, Valentine. A Condessa Sanguinária. Trd. Regina Grisse de Agostinho. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, p 144-145.

[5] KRAMER, Heinrich & SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Trd. Paulo Froés. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1991, p 76.

[6] TIRADRITTI, Francesco e DE LUCA, Araldo. Tesouros do Egito: Do museu do Cairo. Trd. Maria de Lourdes Giannini. Bela Vista, Manole, 1998, p 216.

[7] NINGYOO – BONECAS. © 2003 Aliança Cultural Brasil Japão de Joinville. Acessado em 21/007/2011 às 19h. URL: http://www.oocities.org/br/japaojoinville/ningyoo.htm

[8] Saiba tudo sobre lenda urbana brasileira do Fofão. Em: Arts Fênix. Publicado em 20/03/2010, acessado em 31/08/2011, às 19h. URL:http://artsfenix.blogspot.com/2010/03/saiba-tudo-sobre-lenda-urbana.html

[9] MARINHO, Elizabete Venceslau. A Bela Face do Mal. Paraná, Editora Deus é Fiel, p 37.[10] MARINHO, Elizabete Venceslau. Op cit, p 32-37.[11] MARINHO, Elizabete Venceslau. Op cit, p 33.[12] MARINHO, Elizabete Venceslau. Op cit, p 34.[13] MARINHO, Elizabete Venceslau. Op cit, p 32.

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